domingo, 9 de fevereiro de 2014

Noite e Dia - Um quarto só para Virgínia.

Leonard e Virgínia
O primeiro romance de Virgínia Woolf, The Voyage Out(erroneamente traduzido para o português como A Viagem), tratava de muitos dos fantasmas que assolavam a, desde muito cedo, frágil saúde emocional da ficcionista, resultando desse enfrentamento uma grave crise mental. Por isso em Noite e Dia, a autora abordou temas mais amenos, fugindo de sua vocação experimentalista e moderna. Durante a feitura do livro, sua editora, a Hogarth Press, fundada com seu marido Leonard em sua casa, no suburbio de Richmond, ganhou credibilidade - a ponto de receber o manuscrito de Ulysses, infelizmente abandonado por conta do alto custo de impressão da obra -. Recompensada pelo trabalho braçal na editora, responsável por domar parte dos seus fantasmas, Virgínia pôde finalmente se dedicar a Noite e Dia integralmente.

Noite e Dia segue a linhagem tradicional inglesa de Jane Austen e George Eliot. Nele, Virgínia abusa de elementos que a tornariam famosa, sua história é cheia de subtramas e cada capítulo reserva uma novidade surpreendente capaz de prender o leitor. Mais uma vez, Virgínia lança  mão de familiares para caracterizar personagens. A Senhora Hilbery, mãe da heroína da trama, foi inspirada em uma de sua tias, Anny Thackeray, com quem a jovem Virgínia conviveu e era uma de suas confidentes. Brincar com figura tão importante para sua formação pessoal permitiu-lhe desenvolver sem medo a trama de Noite e Dia e tratar do tema que sempre a perseguiu, a sociedade pós vitoriana do início do século vinte. Tentar desvendar seus costumes e apontar o jogo de contestação que nascia na juventude que viveu o pós guerra através dos desencontros do casal Katharine e Ralph eram seu objetivo.

Katharine Hilbery e Ralph Denhan se encontram logo no início do romance. Katharine é parente de um poeta famoso no século dezessete, Richard Alardyce, e convida Ralph, advogado e intelectual pobretão, para escrever uma biografia do poeta. Ralph não esconde o interesse em Katharine e ganha a admiração das muitas tias da moça, o que acabou pesando contra ele. William Rodney é o entrave do relacionamento. William é um autor com delírios shakespearianos, bonito e elegante que seduz Katharine. Mas quando já estavam noivos Cassandra surge e interfere no relacionamento.  Cassandra Otway é prima de Katharine e seu aparecimento permite o encontro final entre Katharine e Ralph. 

Enquanto escrevia Noite e Dia, Virginia quase não sofreu crises, como era do seu desejo, apenas uma febre que durou duas semanas. Mas ainda desejava livrar-se das tramas convencionais e seguir adiante em sua obra. Infelizmente, a Hogarth Press ainda não podia lhe dar essa liberdade, uma vez que suas publicações eram limitadas. Por conta disso, Virgínia ainda estava presa a editora do meio irmão, Gerald Duckworth, muito mais velho que ela e conservador, de quem a escritora nada suportava. 

Se Katharine e Ralph se permitiram superar a noite para almejar um dia melhor juntos, aliás lição aprendida prematuramente pelo casal Woolf, Virginia permite-se com este romance e a fundação da Hogarth Press a coragem para dar o passo definitivo para a guinada na sua obra e lançar seu primeiro romance moderno, O Quarto de Jacob. Finalmente um quarto só para si. 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Estrela Distante, Roberto Bolaño



Para muitos críticos de Bolaño, Alberto Ruiz-Tagle, pseudônimo do poeta medíocre de origem alemã Carlos Wieder, é o melhor personagem do autor chileno.  O poeta escorregadio e torturador do regime Pinochet era frequentemente visto nas oficinas literárias da Universidade de Concepción, no Chile. Já nessa época tomava atitudes controversas e desaparecia repentinamente por longos períodos. Desencadeado o golpe militar de 1973, Carlos Wieder sai da clandestinidade e dá vazão a sua sociopatia e crueldade.

Após o golpe, muitos alunos da Universidade desaparecem temendo represália política. Um deles era Alberto. Nesse mesmo período, surge espetacularmente na história um tenente coronel da Aeronáutica chilena, famoso repentinamente por causa de suas façanhas aéreas. As apresentações eram marcadas por malabarismos e versos de Orwells no céu com fumaça: A morte é comunhão. O narrador Arturo Belano, também poeta e amigo de Tagle na universidade, desvenda rapidamente o mistério e logo associa Carlos Wieder a Alberto Ruiz Tagle. Com medo de ser descoberto Wieder passa a matar todos os que o conheceram antes do golpe. O assassino metódico também gostava de charadas. Seu sobrenome Wieder, por exemplo, em alemão significa “outra vez”. Talvez uma alusão a persistência do nazismo. Ideologia de segregação racial que recobra o fôlego toda vez que é retirada das catacumbas da história em tentativas, já inicialmente fracassadas, de criar regimes totalitários em prol do “bem comum”.

Após o fim do regime e já exilado na Europa, Carlos é movido pela necessidade incontrolável de se manter ativo e é justamente este impulso que dará fim a sua fuga. Belano rastreia Wieder em diversas publicações ultranacionalistas na Europa, onde mesmo marginalizado insiste em sua vocação poética e publica, ainda que sem a fama anterior, alguma obra sob vários pseudônimos. Quando finalmente é encontrado Carlos está irreconhecível, velho e abatido. Nada mais justo que seu fim fosse o mesmo que reservou à suas vítimas, o apagar silencioso e amargurado de quem sabe que tudo em que acreditava ruiu. Sua morte abrupta e violenta extingue o mal, mas não apaga o terror que implantou em suas vítimas. 

Arturo Belano, personagem utilizado em outras histórias é quase certamente um pseudônimo do autor chileno. Já Carlos wieder é um personagem mencionado em Literatura Nazi na América e no Livro dos Seres Imaginários, de Borges. Apaixonado por Borges, Bolaño assumiu que o livro Detetives Selvagens foi sua tentativa de ser Borges e Cortazar, tentativa essa reconhecida pelo crítico espanhol Inácio Echeverria: "O romance que Borges teria escrito". Em Estrela Distante Bolaño limita-se a perseguir o mestre trajado na figura de Belano e conferindo ao mestre a alcunha de Wieder. 

Metaforicamente talvez não exista melhor analogia a eterna busca de um escritor pelos seus mestres. Na pele de Belano, Bolaño busca sem esmorecer encerrar a tirania, benéfica ou não, que os mestres exercem sobre seus pupilos e finalmente dar o passo adiante em sua obra. Feito finalmente realizado em Detetives Selvagens.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Túnel de Ernesto Sabato


Não há nada mais comum nos dias de hoje do que ligar a TV ou ler os jornais e ser varrido por inúmeras denúncias de violência contra a mulher. Certamente também era assim em 1948 - ano de lançamento deste romance - e assim o foi em qualquer época. Mas uma simples briga conjugal ou guerra entre gêneros não são suficientes para explicar o poder que este romance ganha com o passar do tempo. Então como?  Em entrevista ao diário colombiano O Tempo em 1997, Sabato disse: "Eu sou um anarquista! Um anarquista no sentido melhor da palavra. O povo crê que anarquista é aquele que põe bombas, mas anarquistas foram os grandes espíritos como, por exemplo, Leon Tolstói."
Sabidamente comunista e fã dos grandes espíritos, Ernesto lança uma bomba de polida construção psicológica nas mãos do leitor, forjada sob a principal corrente filosófica do pós-guerra: o existencialismo. E para isso sublinha com maestria o relacionamento possessivo e imaturo de um casal banal como tantos casais de Buenos Aires, que por amor ou não, eram retratados nos jornais policiais lidos pelas pessoas mais comuns.

O romance conta a história de Juan Pablo Castel, artista plástico portenho - assim como Ernesto-, e Maria Iribarne, uma secretária. Os dois se conhecem durante uma exposição do artista e Pablo aparentemente se apaixona imediatamente ao vê-la observando um de seus quadros. Nele uma personagem debruçada numa janela mantém os olhos perdidos na paisagem, claramente um espelho da mente do artista. A partir daí, movido pelo seu temperamento principesco e acanhado, Castel idealiza essa mulher, na sua visão, a única pessoa capaz de compreender sua obra. A trama é toda moldada sobre a psique introvertida e auto destrutiva do artista e conduz o leitor ao túnel dos relacionamentos humanos, muitas vezes sem fim determinado, na tentativa de elucidar sua atitude extremada, o assassinato de Maria.

Em muitos momentos, o personagem narrador indica através de memórias de infância a formação de sua personalidade retraída. Numa delas Castel explica sua condição solitária: Durante um dia nevado, estava sozinho, doente e preso à cama e para passar o tempo observava os cristais de gelo chocando-se conta o vidro da janela do seu quarto. Sua mente ociosa vagava por ensinamentos católicos rígidos e a frieza do relacionamento em família o permitia idealizar erroneamente o mundo a sua volta. Seu pouco trato para lidar com suas emoções fica claro numa passagem do texto, quando sentindo-se amado por Maria, decide correr atrás dela, mas contem-se: “É grotesco um homem conhecido correr pela rua atrás de uma moça”.

Sobre Maria recaem muitas dúvidas. Sua ora amabilidade ora frieza confundem Pablo. Ela é casada com Allende, um homem cego, mas visita frequentemente um primo, Hunter, numa fazenda da família. Ainda que se diga pouco sobre Hunter é quase certo que é divorciado e que se isola do mundo, talvez vitimado por uma doença pulmonar. Maria personifica bem a típica figura altruísta e de temperamento acolhedor que acaba engolida pelo mundo que pretende salvar. Talvez por isso se chame Maria, o mais “santo” dos nomes. Castel parece adorar essa maternidade tardia e aponta isso em mais uma lembrança infantil: “Quantas maças vocês comeram?” peguntava a mãe ao menino Castel e seu irmão sem antes perguntar ao menos se haviam comido uma maça. Diante de tanta certeza, respondiam: “Apenas uma”. 

Para alguns leitores o comportamento de Castel pode parecer machista. Avançando a leitura podemos ver exemplos desse fato. Durante uma visita ao escritório onde Maria trabalhava, Castel logo conclui que ela não pode ser executiva, mas apenas secretária de um; em outra ocasião, enquanto tentava esquecer Maria, Castel leva uma prostituta romena para casa e se enfurece quando enxerga nela a mesma expressão que observara um dia em sua amada. Uma vez que tinham a mesma expressão, ou seja, conseguiam fingir sentimentos, e uma era prostituta, então as duas eram prostitutas.

A insegurança do artista atinge seu ápice quando procurava Maria, que estava mais uma vez na fazenda de Hunter. Em momento algum, Castel se refere a sua aparência, presumamos então que não fosse bonito. Hunter era bonito e demonstrava, sem constrangimento, o seu ciúme diante da relação dúbia entre Castel e Maria, o que só potencializou a rivalidade entre os dois e serviu para Castel como prova inconteste do afeto entre os primos. Esse triângulo amoroso em suspenso afetou violentamente a frágil inteligência emocional do artista. Fato evidenciado durante mais uma passagem da trama: o artista decide escrever para Maria, mas depois de colocá-la no correio desiste e causa uma grande confusão na agência tentando recuperá-la, somente para chegar à conclusão de que enviá-lá foi o melhor a ser feito.

A personalidade introspectiva e neurastênica, a inclinação edipiana e temperamento platônico, os sérios problemas de relacionamento e a dificuldade de encarar a realidade presentes em Castel são uma ótima metáfora para as ideias fascistas que assolaram o mundo durante a segunda guerra mundial e voltariam a assolar a América Latina vinte anos depois durante os anos de ditaduras. No fim o livro é uma perfeita analogia entre a obsessão pela ordem e ganância pelo poder absoluto de uma pequena parcela da sociedade e a inércia do restante dela que se deixa vandalizar, sistematicamente, através da história dos homens. Coincidentemente, após o regime militar argentino, Sabato foi escolhido pelo presidente argentino Raúl Alfonsín para presidir a comissão que investigou os desaparecidos durante o regime. O resultado dessa comissão foi o documento “Nunca Más” e é essa a mensagem deste livro, responsável por alçar seu autor a fama internacional.