segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Estrela Distante, Roberto Bolaño



Para muitos críticos de Bolaño, Alberto Ruiz-Tagle, pseudônimo do poeta medíocre de origem alemã Carlos Wieder, é o melhor personagem do autor chileno.  O poeta escorregadio e torturador do regime Pinochet era frequentemente visto nas oficinas literárias da Universidade de Concepción, no Chile. Já nessa época tomava atitudes controversas e desaparecia repentinamente por longos períodos. Desencadeado o golpe militar de 1973, Carlos Wieder sai da clandestinidade e dá vazão a sua sociopatia e crueldade.

Após o golpe, muitos alunos da Universidade desaparecem temendo represália política. Um deles era Alberto. Nesse mesmo período, surge espetacularmente na história um tenente coronel da Aeronáutica chilena, famoso repentinamente por causa de suas façanhas aéreas. As apresentações eram marcadas por malabarismos e versos de Orwells no céu com fumaça: A morte é comunhão. O narrador Arturo Belano, também poeta e amigo de Tagle na universidade, desvenda rapidamente o mistério e logo associa Carlos Wieder a Alberto Ruiz Tagle. Com medo de ser descoberto Wieder passa a matar todos os que o conheceram antes do golpe. O assassino metódico também gostava de charadas. Seu sobrenome Wieder, por exemplo, em alemão significa “outra vez”. Talvez uma alusão a persistência do nazismo. Ideologia de segregação racial que recobra o fôlego toda vez que é retirada das catacumbas da história em tentativas, já inicialmente fracassadas, de criar regimes totalitários em prol do “bem comum”.

Após o fim do regime e já exilado na Europa, Carlos é movido pela necessidade incontrolável de se manter ativo e é justamente este impulso que dará fim a sua fuga. Belano rastreia Wieder em diversas publicações ultranacionalistas na Europa, onde mesmo marginalizado insiste em sua vocação poética e publica, ainda que sem a fama anterior, alguma obra sob vários pseudônimos. Quando finalmente é encontrado Carlos está irreconhecível, velho e abatido. Nada mais justo que seu fim fosse o mesmo que reservou à suas vítimas, o apagar silencioso e amargurado de quem sabe que tudo em que acreditava ruiu. Sua morte abrupta e violenta extingue o mal, mas não apaga o terror que implantou em suas vítimas. 

Arturo Belano, personagem utilizado em outras histórias é quase certamente um pseudônimo do autor chileno. Já Carlos wieder é um personagem mencionado em Literatura Nazi na América e no Livro dos Seres Imaginários, de Borges. Apaixonado por Borges, Bolaño assumiu que o livro Detetives Selvagens foi sua tentativa de ser Borges e Cortazar, tentativa essa reconhecida pelo crítico espanhol Inácio Echeverria: "O romance que Borges teria escrito". Em Estrela Distante Bolaño limita-se a perseguir o mestre trajado na figura de Belano e conferindo ao mestre a alcunha de Wieder. 

Metaforicamente talvez não exista melhor analogia a eterna busca de um escritor pelos seus mestres. Na pele de Belano, Bolaño busca sem esmorecer encerrar a tirania, benéfica ou não, que os mestres exercem sobre seus pupilos e finalmente dar o passo adiante em sua obra. Feito finalmente realizado em Detetives Selvagens.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Túnel de Ernesto Sabato


Não há nada mais comum nos dias de hoje do que ligar a TV ou ler os jornais e ser varrido por inúmeras denúncias de violência contra a mulher. Certamente também era assim em 1948 - ano de lançamento deste romance - e assim o foi em qualquer época. Mas uma simples briga conjugal ou guerra entre gêneros não são suficientes para explicar o poder que este romance ganha com o passar do tempo. Então como?  Em entrevista ao diário colombiano O Tempo em 1997, Sabato disse: "Eu sou um anarquista! Um anarquista no sentido melhor da palavra. O povo crê que anarquista é aquele que põe bombas, mas anarquistas foram os grandes espíritos como, por exemplo, Leon Tolstói."
Sabidamente comunista e fã dos grandes espíritos, Ernesto lança uma bomba de polida construção psicológica nas mãos do leitor, forjada sob a principal corrente filosófica do pós-guerra: o existencialismo. E para isso sublinha com maestria o relacionamento possessivo e imaturo de um casal banal como tantos casais de Buenos Aires, que por amor ou não, eram retratados nos jornais policiais lidos pelas pessoas mais comuns.

O romance conta a história de Juan Pablo Castel, artista plástico portenho - assim como Ernesto-, e Maria Iribarne, uma secretária. Os dois se conhecem durante uma exposição do artista e Pablo aparentemente se apaixona imediatamente ao vê-la observando um de seus quadros. Nele uma personagem debruçada numa janela mantém os olhos perdidos na paisagem, claramente um espelho da mente do artista. A partir daí, movido pelo seu temperamento principesco e acanhado, Castel idealiza essa mulher, na sua visão, a única pessoa capaz de compreender sua obra. A trama é toda moldada sobre a psique introvertida e auto destrutiva do artista e conduz o leitor ao túnel dos relacionamentos humanos, muitas vezes sem fim determinado, na tentativa de elucidar sua atitude extremada, o assassinato de Maria.

Em muitos momentos, o personagem narrador indica através de memórias de infância a formação de sua personalidade retraída. Numa delas Castel explica sua condição solitária: Durante um dia nevado, estava sozinho, doente e preso à cama e para passar o tempo observava os cristais de gelo chocando-se conta o vidro da janela do seu quarto. Sua mente ociosa vagava por ensinamentos católicos rígidos e a frieza do relacionamento em família o permitia idealizar erroneamente o mundo a sua volta. Seu pouco trato para lidar com suas emoções fica claro numa passagem do texto, quando sentindo-se amado por Maria, decide correr atrás dela, mas contem-se: “É grotesco um homem conhecido correr pela rua atrás de uma moça”.

Sobre Maria recaem muitas dúvidas. Sua ora amabilidade ora frieza confundem Pablo. Ela é casada com Allende, um homem cego, mas visita frequentemente um primo, Hunter, numa fazenda da família. Ainda que se diga pouco sobre Hunter é quase certo que é divorciado e que se isola do mundo, talvez vitimado por uma doença pulmonar. Maria personifica bem a típica figura altruísta e de temperamento acolhedor que acaba engolida pelo mundo que pretende salvar. Talvez por isso se chame Maria, o mais “santo” dos nomes. Castel parece adorar essa maternidade tardia e aponta isso em mais uma lembrança infantil: “Quantas maças vocês comeram?” peguntava a mãe ao menino Castel e seu irmão sem antes perguntar ao menos se haviam comido uma maça. Diante de tanta certeza, respondiam: “Apenas uma”. 

Para alguns leitores o comportamento de Castel pode parecer machista. Avançando a leitura podemos ver exemplos desse fato. Durante uma visita ao escritório onde Maria trabalhava, Castel logo conclui que ela não pode ser executiva, mas apenas secretária de um; em outra ocasião, enquanto tentava esquecer Maria, Castel leva uma prostituta romena para casa e se enfurece quando enxerga nela a mesma expressão que observara um dia em sua amada. Uma vez que tinham a mesma expressão, ou seja, conseguiam fingir sentimentos, e uma era prostituta, então as duas eram prostitutas.

A insegurança do artista atinge seu ápice quando procurava Maria, que estava mais uma vez na fazenda de Hunter. Em momento algum, Castel se refere a sua aparência, presumamos então que não fosse bonito. Hunter era bonito e demonstrava, sem constrangimento, o seu ciúme diante da relação dúbia entre Castel e Maria, o que só potencializou a rivalidade entre os dois e serviu para Castel como prova inconteste do afeto entre os primos. Esse triângulo amoroso em suspenso afetou violentamente a frágil inteligência emocional do artista. Fato evidenciado durante mais uma passagem da trama: o artista decide escrever para Maria, mas depois de colocá-la no correio desiste e causa uma grande confusão na agência tentando recuperá-la, somente para chegar à conclusão de que enviá-lá foi o melhor a ser feito.

A personalidade introspectiva e neurastênica, a inclinação edipiana e temperamento platônico, os sérios problemas de relacionamento e a dificuldade de encarar a realidade presentes em Castel são uma ótima metáfora para as ideias fascistas que assolaram o mundo durante a segunda guerra mundial e voltariam a assolar a América Latina vinte anos depois durante os anos de ditaduras. No fim o livro é uma perfeita analogia entre a obsessão pela ordem e ganância pelo poder absoluto de uma pequena parcela da sociedade e a inércia do restante dela que se deixa vandalizar, sistematicamente, através da história dos homens. Coincidentemente, após o regime militar argentino, Sabato foi escolhido pelo presidente argentino Raúl Alfonsín para presidir a comissão que investigou os desaparecidos durante o regime. O resultado dessa comissão foi o documento “Nunca Más” e é essa a mensagem deste livro, responsável por alçar seu autor a fama internacional.