segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Túnel de Ernesto Sabato


Não há nada mais comum nos dias de hoje do que ligar a TV ou ler os jornais e ser varrido por inúmeras denúncias de violência contra a mulher. Certamente também era assim em 1948 - ano de lançamento deste romance - e assim o foi em qualquer época. Mas uma simples briga conjugal ou guerra entre gêneros não são suficientes para explicar o poder que este romance ganha com o passar do tempo. Então como?  Em entrevista ao diário colombiano O Tempo em 1997, Sabato disse: "Eu sou um anarquista! Um anarquista no sentido melhor da palavra. O povo crê que anarquista é aquele que põe bombas, mas anarquistas foram os grandes espíritos como, por exemplo, Leon Tolstói."
Sabidamente comunista e fã dos grandes espíritos, Ernesto lança uma bomba de polida construção psicológica nas mãos do leitor, forjada sob a principal corrente filosófica do pós-guerra: o existencialismo. E para isso sublinha com maestria o relacionamento possessivo e imaturo de um casal banal como tantos casais de Buenos Aires, que por amor ou não, eram retratados nos jornais policiais lidos pelas pessoas mais comuns.

O romance conta a história de Juan Pablo Castel, artista plástico portenho - assim como Ernesto-, e Maria Iribarne, uma secretária. Os dois se conhecem durante uma exposição do artista e Pablo aparentemente se apaixona imediatamente ao vê-la observando um de seus quadros. Nele uma personagem debruçada numa janela mantém os olhos perdidos na paisagem, claramente um espelho da mente do artista. A partir daí, movido pelo seu temperamento principesco e acanhado, Castel idealiza essa mulher, na sua visão, a única pessoa capaz de compreender sua obra. A trama é toda moldada sobre a psique introvertida e auto destrutiva do artista e conduz o leitor ao túnel dos relacionamentos humanos, muitas vezes sem fim determinado, na tentativa de elucidar sua atitude extremada, o assassinato de Maria.

Em muitos momentos, o personagem narrador indica através de memórias de infância a formação de sua personalidade retraída. Numa delas Castel explica sua condição solitária: Durante um dia nevado, estava sozinho, doente e preso à cama e para passar o tempo observava os cristais de gelo chocando-se conta o vidro da janela do seu quarto. Sua mente ociosa vagava por ensinamentos católicos rígidos e a frieza do relacionamento em família o permitia idealizar erroneamente o mundo a sua volta. Seu pouco trato para lidar com suas emoções fica claro numa passagem do texto, quando sentindo-se amado por Maria, decide correr atrás dela, mas contem-se: “É grotesco um homem conhecido correr pela rua atrás de uma moça”.

Sobre Maria recaem muitas dúvidas. Sua ora amabilidade ora frieza confundem Pablo. Ela é casada com Allende, um homem cego, mas visita frequentemente um primo, Hunter, numa fazenda da família. Ainda que se diga pouco sobre Hunter é quase certo que é divorciado e que se isola do mundo, talvez vitimado por uma doença pulmonar. Maria personifica bem a típica figura altruísta e de temperamento acolhedor que acaba engolida pelo mundo que pretende salvar. Talvez por isso se chame Maria, o mais “santo” dos nomes. Castel parece adorar essa maternidade tardia e aponta isso em mais uma lembrança infantil: “Quantas maças vocês comeram?” peguntava a mãe ao menino Castel e seu irmão sem antes perguntar ao menos se haviam comido uma maça. Diante de tanta certeza, respondiam: “Apenas uma”. 

Para alguns leitores o comportamento de Castel pode parecer machista. Avançando a leitura podemos ver exemplos desse fato. Durante uma visita ao escritório onde Maria trabalhava, Castel logo conclui que ela não pode ser executiva, mas apenas secretária de um; em outra ocasião, enquanto tentava esquecer Maria, Castel leva uma prostituta romena para casa e se enfurece quando enxerga nela a mesma expressão que observara um dia em sua amada. Uma vez que tinham a mesma expressão, ou seja, conseguiam fingir sentimentos, e uma era prostituta, então as duas eram prostitutas.

A insegurança do artista atinge seu ápice quando procurava Maria, que estava mais uma vez na fazenda de Hunter. Em momento algum, Castel se refere a sua aparência, presumamos então que não fosse bonito. Hunter era bonito e demonstrava, sem constrangimento, o seu ciúme diante da relação dúbia entre Castel e Maria, o que só potencializou a rivalidade entre os dois e serviu para Castel como prova inconteste do afeto entre os primos. Esse triângulo amoroso em suspenso afetou violentamente a frágil inteligência emocional do artista. Fato evidenciado durante mais uma passagem da trama: o artista decide escrever para Maria, mas depois de colocá-la no correio desiste e causa uma grande confusão na agência tentando recuperá-la, somente para chegar à conclusão de que enviá-lá foi o melhor a ser feito.

A personalidade introspectiva e neurastênica, a inclinação edipiana e temperamento platônico, os sérios problemas de relacionamento e a dificuldade de encarar a realidade presentes em Castel são uma ótima metáfora para as ideias fascistas que assolaram o mundo durante a segunda guerra mundial e voltariam a assolar a América Latina vinte anos depois durante os anos de ditaduras. No fim o livro é uma perfeita analogia entre a obsessão pela ordem e ganância pelo poder absoluto de uma pequena parcela da sociedade e a inércia do restante dela que se deixa vandalizar, sistematicamente, através da história dos homens. Coincidentemente, após o regime militar argentino, Sabato foi escolhido pelo presidente argentino Raúl Alfonsín para presidir a comissão que investigou os desaparecidos durante o regime. O resultado dessa comissão foi o documento “Nunca Más” e é essa a mensagem deste livro, responsável por alçar seu autor a fama internacional.